UMA VIAGEM AO PASSADO... POR ARTUR
O''ALDRA'
Naquele dia os
crimes estavam de folga, por isso eu e o meu amigo Matos estávamos decididos a
passar uma tarde agradável... nos copos. Mas ficámo-nos só pela intenção pois
tivemos de aturar as aventuras e desventuras de Artur, mais conhecido pelo
'Aldra', e com razões para isso.
Apareceu-nos
gabinete dentro, quando nos preparávamos para fechar o estaminé, como
habitualmente aos berros, braços levantados, como se estivesse numa feira.
Certamente que nos vinha confessar a sua última façanha, talvez até tivesse
salvo alguma donzela das garras do dragão. Dirigiu-se até nós.
-Ei, Ricky, tudo
bem, olá Matos, como estás. Ambos respondemos: -Bem, obrigado, mas dá-nos licença
que vamos 'zarpar'.
-Eh lá, que é isso? Não vão nada. Vão ouvir a
minha mais fantástica e fabulosa aventura.
-Como sabem, o
professor k = inventou a máquina do tempo, e convidou-me para ser o primeiro
viajante ao passado, como seria de esperar eu aceitei, mas com muitas condições,
como era obvio.
- Mas vejam lá
vocês, meus bons amigos, o que me sucedeu...
Entretanto, eu,
pelo canto da boca ia dizendo para o Matos: -Lá vem a história do dragão.
-Meus amigos,
vocês não vão acreditar, fui parar ao ano da Graça do Senhor de 1582, e tive
logo a felicidade de encontrar o Papa Gregório X, que os senhores já devem ter
ouvido falar...
-Oh, sim -respondi
eu prontamente. -Andou comigo na escola...
-Eh pá! Tu não
gozes comigo, 'tá bem’? Mas como 'tava' dizendo, nesse dia 10 de outubro de 1582
cumprimentei sua santidade o Papa Gregório de Túrones, bispo de Neocesareia,
que nessa mesma noite me apresentou a Carlos I, rei de Inglaterra, filho de
Jaime III.
-Oi, chega!
-disse eu. -Também andei a estudar, se não te lembras. Só neste bocadinho
disseste mais mentiras, que alguns dos suspeitos todos juntos.
Bem. E eu só
quero que me digam quais as petas que Artur (Sir Artur 'Aldra') nos pregou...
(...) o tipo
enfiou: ·
-Mentiras?! Eu
ia lá contar mentiras a vocês, dois tipos fixes!...
-Pois olha: para
começar o tal Papa Gregório X viveu no século XII, foi Papa de 1271 a 1276; o
Papa, nesse ano da graça de 1582 era Gregório, sim, mas o XIII!
Este Gregório
XIII, reformou o calendário; é por isso que o calendário que usamos hoje se chama gregoriano. Antes, vigorava o juliano, o qual, ao
fim de aproximadamente 400 anos, fazia com que houvesse um atraso de 3 dias.
Assim, e como a Igreja Católica, no Concilio de Niceia (em 325), relativamente à
data da Páscoa tinha decidido que o Domingo de Páscoa devia ser associado a
primeira lua da primavera, o desvio progressivo do calendário em relação ao
equinócio faria com que a Páscoa se celebrasse no pino do verão.
Parei, para
tomar fôlego.
-Por isso, em
1582 e desde 325, o equinócio da primavera tinha, no calendário, avançado dez
dias em relação a 21 de março, data que lhe tinha sido atribuída. A reforma
teve, pois, por objetivo estabelecer a concordância entre o calendário e as
estações. Nesse ano, o Papa ordenou a supressão de dez dias: o ano de 1582
teve, pois, apenas 355 dias. Em Roma, a quinta-feira dia 4 de outubro foi
seguida de sexta-feira, 15 de outubro... Quer dizer: o dia I0 de outubro nunca
existiu! Por curiosidade, Santa Teresa de Ávila morreu a 4 de outubro desse
ano, e foi enterrada no dia seguinte, a 15... Nem todos os países adoptaram o calendário
ao mesmo tempo; em Espanha e Portugal, entrou em vigor ao mesmo tempo que em
Roma; em França, em dezembro do mesmo ano; os países protestantes só o
adoptaram vários anos depois, até mesmo só por volta de 1700 (Países Baixos,
Suíça). Em Inglaterra, foi no ano de 1752, e tiveram de cortar onze dias. O Japão
adotou-o em 1873, a China em 1911, e os países de tradição ortodoxa
conservaram o calendário juliano até este século; a antiga União Soviética, por
exemplo, adotou-o apenas em 1918, e a Grécia, em 1923!
0 'Aldra' tentou
replicar:
-Pois é, que...
Mas eu já estava
embalado:
-Gregório de
Tunores nunca foi Papa! Este teólogo e historiador francês viveu no século VI
(muito antes de 1582, meu caro Artur!), e a sua principal obra, intitulada
'História dos Francos', data de 538 ou 594. Outro Gregório, São Gregório, o
Taumaturgo, é teólogo da Igreja Grega, foi realmente Bispo de Neocesareia e é
festejado a 17 de novembro; mas morreu em 270: -no século III, meu caro Artur!
-Devo ter feito
confusão; afinal, têm todos o mesmo nome...
Mas nem o deixei
terminar:
-Nessa altura,
as relações entre o Papa, como chefe da Igreja Católica, e o rei inglês, chefe
da Igreja Anglicana (criada par Henrique VIII, em 1534, com o Ato de
Supremacia) não eram muito cordiais. A rainha Isabel I (que reinou de 1558 a
1603) detestava católicos; não seria de esperar encontrá-la em bons termos com o
Papa Gregório XIII! E existiu realmente um Carlos I, rei de Inglaterra e Escócia;
por acaso, até foi executado quando da instauração da República Inglesa. Mas…
nasceu quase vinte anos depois da pretensa reunião com o Papa, em 1600 e foi decapitado
em 1649! E, para acabar, o pai
dele chamava-se Jaime, da casa dos Stuarts, mas era o I, e não o III!
E, com esta
estocada final, peguei nas minhas coisas e sai do gabinete, seguido de perto
pelo Matos, deixando atrás de nós um Artur reduzido à insignificância.
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