terça-feira, 2 de dezembro de 2025

A Página dos Enigmas nº 182

 


Mais um espaço neste blogue. Aqui, mensalmente, irão sendo publicados alguns contos de policiaristas e não só. Irão ser privilegiados os policiaristas portugueses, não por qualquer laivo de chauvinismo, mas porque este é mais um espaço que permitirá divulgar o que escrevem

Começamos com um conto que ficou classificado em 3º lugar em 2005 no jornal Público, no Concurso de Contos na modalidade Policial


O riso do destino

Autor: Paulo


           O chão lamacento da berma da estrada afundava-se debaixo dos sapatos. Jorge caminhava com passo firme, intencional, num sentimento que o seu rosto inexpressivo não mostrava. Olhava surpreendido tudo o que o rodeava: as árvores, as casas, os carros que passavam, as pessoas que com ele se cruzavam e que não o reconheciam, ou que fingiam não o reconhecer.

Treze anos. Fora muito tempo a ver o sol através do gradeamento de quadrados, ou pelo bordo superior dos muros do pátio. Tinham sido muitos anos sem poder respirar a brisa livre. Apenas a inspirar aquele ar, prisioneiro como ele, que embatia nos muros, nas paredes da cela, e que parecia ser sempre o mesmo: poluído, infecto, morno; com um sabor tão diferente do que ele aspirava agora sofregamente.

Treze anos a pagar um crime que não cometera, punido por uma culpa que não era sua. Treze anos de tristeza, amargura e revolta, a cismar sobre quem cometera o crime. Treze anos a recordar todos os pormenores, a recriar todos os movimentos, tentando encontrar a pista que o pudesse levar ao criminoso. A pista que a polícia não encontrara. Treze anos...Alberto aparecera morto com a garganta cortada. Jorge fora o principal suspeito.

Luta de amores. Luta pela Evelina. A sorte pendera para o seu lado, e a amizade de Alberto, que vinha desde a infância, perdera-se. A luta tornara-se real. Se não tivessem sido separados, talvez um ficasse morto nesse momento. Mas o destino não quisera assim. A tragédia tinha a hora marcada para mais tarde.

Como aparecera o seu porta-chaves junto do corpo? Treze anos à procura de explicação.

Talvez o tivesse perdido. Dois dias antes do crime estivera no local onde aparecera o corpo de Alberto, acompanhado por Evelina. Mais um encontro furtivo. Era o local onde deixavam correr a sua paixão impaciente. Talvez na sofreguidão dos movimentos, no meio do caos dos sentidos, o porta-chaves tivesse caído. Não dera pela sua falta, mas também raras vezes necessitava da chave para entrar em casa. Mas havia mais para explicar. Poderia decifrar o aparecimento do objeto, mas não conseguia explicar a morte de Alberto. Porque fora morto naquele local tão importante para si e para Evelina?

Depois fora o julgamento, em que ele não considerara importante mencionar o que fazia tantas vezes no local do crime. Nunca pensara que isso fosse importante. Preferira resguardar a mulher que amava. Sempre achara que bastaria dizer que já lá estivera antes. Mas não fora suficiente. Fora condenado. Depois Evelina sumira-se da sua vida. Ainda o visitara uma ou duas vezes e depois volatilizara-se.

Agora, Jorge caminhava novamente ao seu encontro. Não para reviver a paixão, apenas para esclarecer o passado.

Tirou o lenço de pano do bolso e assoou-se ruidosamente. A falta de hábito de andar à chuva constipara-o nas poucas horas que passara fora da prisão.

Treze anos depois, Evelina regressara. Porque aceitara vê-la, quando ela, surpreendentemente, aparecera na prisão para o visitar? Não sabia.

Curiosidade? Não conseguira classificar os seus sentimentos.

Ela aparecera. Mais velha, um pouco mais redonda, mas linda como sempre, com os olhos negros a parecerem atravessá-lo, e a fazerem com que esquecidos sentimentos, que ele julgava perdidos, voltassem a emergir. Contara-lhe uma história incrível. Casara com Henrique. O menino rico da aldeia. Aquele que se julgava dono de tudo e de todos. Jorge lembrava-se dele a tentar arrastar a asa a Evelina, mas sem ter qualquer possibilidade face aos dois concorrentes.

Evelina falara-lhe da solidão que sentira. Contara-lhe do apoio que Henrique lhe prestara nas horas difíceis que vivera. Informara-o do sentimento que os fora ligando e que os levara ao casamento. Mas contara-lhe mais. Descrevera-lhe como recentemente descobrira que fora o homem com quem estava casada que matara Alberto. Henrique falava de noite, e a dormir descrevera tudo. Referira, como na mesa do café, no meio de uma brincadeira de amigos, conseguira tirar-lhe o porta-chaves, e como o utilizara um dia depois. Contara como de um só golpe se livrara de dois adversários.

Evelina fora ter com Jorge a confidenciar-lhe o segredo. Não sabia o que fazer. Henrique, depois de acordado, negara tudo chamando-a louca. Que se ela contasse a alguém seria internada num manicómio. Mas ela precisava de desabafar. Correra à prisão para lhe contar, sendo essa também uma forma de aliviar a consciência, confessando-lhe que chegara a acreditar ser ele o assassino. A solidão atirara-a para Henrique, atitude de que se sentia arrependida, e que estava disposta a tentar remediar.

Que fazia ele, agora, a caminho da casa de Evelina? Porque escrevera a dizer-lhe que a iria visitar? Porque lhe prometera que os seus primeiros passos, assim que se visse em liberdade, o encaminhariam para ela? Não sabia. Era como se uma mão invisível o empurrasse. Rever Evelina? Vingar-se de Henrique? Eram muitas as questões que buliam dentro da sua cabeça e não encontravam resposta. Havia também algumas lacunas no relato de Evelina que ele pretendia esclarecer.

 À porta da casa viu o rosto aflito de Evelina. Segurou-lhe as mãos. Gaguejava, balbuciando sons desconexos, arrastando-o consigo. Ao transpor a porta do que lhe parecia ser uma sala de jantar, devido à grande mesa que ocupava parte do espaço, sentiu um baque. Um homem, que ele conseguiu reconhecer como sendo Henrique, jazia no chão com o peito cheio de sangue. A sua primeira reação foi fugir, mas parou a tempo. O destino ria-se dele novamente. Decidiu enfrentá-lo. Fugir seria uma prova de culpa.

Evelina contou-lhe tudo o que se passara. Henrique descobrira a visita que ela fizera à prisão. Encontrara a carta que ele enviara e ficara louco de ciúmes. Apontara-lhe a caçadeira carregada, mas depois disse-lhe que ficaria à espera. Dissera que primeiro o mataria a ele e depois pensava no que lhe faria a ela.

Fora o medo que lhe guiara as mãos. Num momento em que ele pousara a arma, ela pegara-lhe e atirara. Acontecera poucos minutos antes de Jorge chegar.

Enquanto falava, abraçava-se a Jorge, chorando, pedindo-lhe para partir. Dizia-lhe que se soubessem que ele lá estivera, ninguém o salvaria da prisão outra vez, mesmo que ela confessasse o crime. O melhor era ele desaparecer. Ela ocultaria a sua presença, e atiraria com as culpas para um ladrão. Dar-lhe-ia uns minutos para que ele fugisse e depois chamaria a guarda.

Quase que o empurrou da porta para fora. As lágrimas corriam-lhe pela face enquanto o via partir. Ele, sem palavras, inerte, abúlico, obedecia-lhe como um autómato.

Desviou-se da estrada principal, tentando não ser visto. Afastava-se da casa, confuso. Sentia-se um enviado da morte. Um criador de tragédias.

A chuva transformara-se num chuvisco persistente que afastava as pessoas da rua. Com um pouco de sorte ninguém o veria. Pensou que deveria ter trazido a carta que escrevera a Evelina. Se caísse nas mãos das autoridades, ele estaria perdido. De nada lhe valeria o que Evelina contasse. A carta seria fatal. Pensou em voltar atrás. Parou, decidido a retroceder, mas considerou que seria demasiado perigoso. Decerto que Evelina faria a carta desaparecer.

O chão molhado amolecia a terra, obrigando os sapatos a enterrarem-se. Os pés molhados fizeram-no espirrar. Pôs a mão no bolso para retirar o lenço. Estacou subitamente. Remexeu os bolsos todos, na esperança que o tivesse trocado de sítio.

Um feixe luminoso rasgou-lhe a mente. Finalmente compreendera. Esclarecera treze anos de dúvidas. O lenço desaparecera.


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