Mais um espaço neste blogue. Aqui, mensalmente, irão sendo publicados alguns contos de policiaristas e não só. Irão ser privilegiados os policiaristas portugueses, não por qualquer laivo de chauvinismo, mas porque este é mais um espaço que permitirá divulgar o que escrevem
Começamos com um conto que ficou classificado em 3º lugar em 2005 no jornal Público, no Concurso de Contos na modalidade Policial
O riso do destino
Autor: Paulo
O chão lamacento da berma
da estrada afundava-se debaixo dos sapatos. Jorge caminhava com passo firme,
intencional, num sentimento que o seu rosto inexpressivo não mostrava. Olhava
surpreendido tudo o que o rodeava: as árvores, as casas, os carros que
passavam, as pessoas que com ele se cruzavam e que não o reconheciam, ou que
fingiam não o reconhecer.
Treze
anos. Fora muito tempo a ver o sol através do gradeamento de quadrados, ou pelo
bordo superior dos muros do pátio. Tinham sido muitos anos sem poder respirar a
brisa livre. Apenas a inspirar aquele ar, prisioneiro como ele, que embatia nos
muros, nas paredes da cela, e que parecia ser sempre o mesmo: poluído, infecto,
morno; com um sabor tão diferente do que ele aspirava agora sofregamente.
Treze anos a pagar um crime que não cometera, punido por uma culpa que não era sua. Treze anos de tristeza, amargura e revolta, a cismar sobre quem cometera o crime. Treze anos a recordar todos os pormenores, a recriar todos os movimentos, tentando encontrar a pista que o pudesse levar ao criminoso. A pista que a polícia não encontrara. Treze anos...Alberto aparecera morto com a garganta cortada. Jorge fora o principal suspeito.
Luta de amores. Luta pela Evelina. A sorte pendera
para o seu lado, e a amizade de Alberto, que vinha desde a infância,
perdera-se. A luta tornara-se real. Se não tivessem sido separados, talvez um
ficasse morto nesse momento. Mas o destino não quisera assim. A tragédia tinha
a hora marcada para mais tarde.
Como
aparecera o seu porta-chaves junto do corpo? Treze anos à procura de explicação.
Talvez
o tivesse perdido. Dois dias antes do crime estivera no local onde aparecera o
corpo de Alberto, acompanhado por Evelina. Mais um encontro furtivo. Era o
local onde deixavam correr a sua paixão impaciente. Talvez na sofreguidão dos
movimentos, no meio do caos dos sentidos, o porta-chaves tivesse caído. Não
dera pela sua falta, mas também raras vezes necessitava da chave para entrar em
casa. Mas havia mais para explicar. Poderia decifrar o aparecimento do objeto,
mas não conseguia explicar a morte de Alberto. Porque fora morto naquele local
tão importante para si e para Evelina?
Depois
fora o julgamento, em que ele não considerara importante mencionar o que fazia
tantas vezes no local do crime. Nunca pensara que isso fosse importante.
Preferira resguardar a mulher que amava. Sempre achara que bastaria dizer que
já lá estivera antes. Mas não fora suficiente. Fora condenado. Depois Evelina
sumira-se da sua vida. Ainda o visitara uma ou duas vezes e depois
volatilizara-se.
Agora, Jorge caminhava novamente ao seu encontro. Não para reviver a paixão, apenas
para esclarecer o passado.
Tirou
o lenço de pano do bolso e assoou-se ruidosamente. A falta de hábito de andar à
chuva constipara-o nas poucas horas que passara fora da prisão.
Treze
anos depois, Evelina regressara. Porque aceitara vê-la, quando ela,
surpreendentemente, aparecera na prisão para o visitar? Não sabia.
Curiosidade?
Não conseguira classificar os seus sentimentos.
Ela
aparecera. Mais velha, um pouco mais redonda, mas linda como sempre, com os
olhos negros a parecerem atravessá-lo, e a fazerem com que esquecidos
sentimentos, que ele julgava perdidos, voltassem a emergir. Contara-lhe uma história
incrível. Casara com Henrique. O menino rico da aldeia. Aquele que se julgava
dono de tudo e de todos. Jorge lembrava-se dele a tentar arrastar a asa a
Evelina, mas sem ter qualquer possibilidade face aos dois concorrentes.
Evelina
falara-lhe da solidão que sentira. Contara-lhe do apoio que Henrique lhe
prestara nas horas difíceis que vivera. Informara-o do sentimento que os fora
ligando e que os levara ao casamento. Mas contara-lhe mais. Descrevera-lhe como
recentemente descobrira que fora o homem com quem estava casada que matara
Alberto. Henrique falava de noite, e a dormir descrevera tudo. Referira, como na
mesa do café, no meio de uma brincadeira de amigos, conseguira tirar-lhe o
porta-chaves, e como o utilizara um dia depois. Contara como de um só golpe se
livrara de dois adversários.
Evelina
fora ter com Jorge a confidenciar-lhe o segredo. Não sabia o que fazer.
Henrique, depois de acordado, negara tudo chamando-a louca. Que se ela contasse
a alguém seria internada num manicómio. Mas ela precisava de desabafar. Correra
à prisão para lhe contar, sendo essa também uma forma de aliviar a consciência,
confessando-lhe que chegara a acreditar ser ele o assassino. A solidão
atirara-a para Henrique, atitude de que se sentia arrependida, e que estava
disposta a tentar remediar.
Que
fazia ele, agora, a caminho da casa de Evelina? Porque escrevera a dizer-lhe
que a iria visitar? Porque lhe prometera que os seus primeiros passos, assim
que se visse em liberdade, o encaminhariam para ela? Não sabia. Era como se uma
mão invisível o empurrasse. Rever Evelina? Vingar-se de Henrique? Eram muitas
as questões que buliam dentro da sua cabeça e não encontravam resposta. Havia
também algumas lacunas no relato de Evelina que ele pretendia esclarecer.
À porta da casa viu o rosto aflito de Evelina.
Segurou-lhe as mãos. Gaguejava, balbuciando sons desconexos, arrastando-o
consigo. Ao transpor a porta do que lhe parecia ser uma sala de jantar, devido
à grande mesa que ocupava parte do espaço, sentiu um baque. Um homem, que ele
conseguiu reconhecer como sendo Henrique, jazia no chão com o peito cheio de
sangue. A sua primeira reação foi fugir, mas parou a tempo. O destino ria-se
dele novamente. Decidiu enfrentá-lo. Fugir seria uma prova de culpa.
Evelina
contou-lhe tudo o que se passara. Henrique descobrira a visita que ela fizera à
prisão. Encontrara a carta que ele enviara e ficara louco de ciúmes.
Apontara-lhe a caçadeira carregada, mas depois disse-lhe que ficaria à espera. Dissera que primeiro o mataria a ele e depois pensava no que lhe faria a ela.
Fora
o medo que lhe guiara as mãos. Num momento em que ele pousara a arma, ela
pegara-lhe e atirara. Acontecera poucos minutos antes de Jorge chegar.
Enquanto
falava, abraçava-se a Jorge, chorando, pedindo-lhe para partir. Dizia-lhe que
se soubessem que ele lá estivera, ninguém o salvaria da prisão outra vez, mesmo
que ela confessasse o crime. O melhor era ele desaparecer. Ela ocultaria a sua presença,
e atiraria com as culpas para um ladrão. Dar-lhe-ia uns minutos para que ele
fugisse e depois chamaria a guarda.
Quase
que o empurrou da porta para fora. As lágrimas corriam-lhe pela face enquanto o
via partir. Ele, sem palavras, inerte, abúlico, obedecia-lhe como um autómato.
Desviou-se
da estrada principal, tentando não ser visto. Afastava-se da casa, confuso.
Sentia-se um enviado da morte. Um criador de tragédias.
A
chuva transformara-se num chuvisco persistente que afastava as pessoas da rua.
Com um pouco de sorte ninguém o veria. Pensou que deveria ter trazido a carta
que escrevera a Evelina. Se caísse nas mãos das autoridades, ele estaria
perdido. De nada lhe valeria o que Evelina contasse. A carta seria fatal.
Pensou em voltar atrás. Parou, decidido a retroceder, mas considerou que seria
demasiado perigoso. Decerto que Evelina faria a carta desaparecer.
O
chão molhado amolecia a terra, obrigando os sapatos a enterrarem-se. Os pés
molhados fizeram-no espirrar. Pôs a mão no bolso para retirar o lenço. Estacou
subitamente. Remexeu os bolsos todos, na esperança que o tivesse trocado de
sítio.
Um
feixe luminoso rasgou-lhe a mente. Finalmente compreendera. Esclarecera treze
anos de dúvidas. O lenço desaparecera.

Muito bom🧣🧣🧣🧣
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